Clarice Lispector, “Perto do coração selvagem“.
- Otávio transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os dois eram incapazes de se libertar pelo amor, porque aceitava sucumbida o próprio medo de sofrer, sua incapacidade de conduzir-se além da fronteira da revolta.
- (…) se existisse Deus, é que ele teria desertado daquele mundo subitamente, excessivamente limpo, como uma casa ao sábado, quieta, sem poeira, cheirando a sabão. Joana sorriu. Por que uma casa encerada e limpa deixava-a perdida como num mosteiro, desolada, vagando pelos corredores?
- (…) ela abria a mão de quando em quando e deixava um passarinho subitamente voar.
- O sal e o sol eram pequenas setas brilhantes que nasciam aqui e ali ” picando-a, estirando a pele de seu rosto molhado. Sua felicidade aumentou, reuniu-se na garganta como um saco de ar. Mas agora era uma alegria séria, sem vontade de rir. Era uma alegria quase de chorar, meu Deus.
-
O pai morrera como não se vê o fundo do mar, sentiu.
- E sua tristeza era um cansaço grande, pesado, sem raiva. Caminhou com ele pela praia imensa.
- Não tenho saudade, compreende? – E nesse momento declarou alto, devagar, deslumbrada. – Não é saudade, porque eu tenho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria…
- Mesmo sofrer era bom porque enquanto o mais baixo sofrimento se desenrolava também se existia – como um rio aparte.
- –Bom é viver…, balbuciou ela. Mau é…
–É?…
–Mau é não viver…
–Morrer?–indagou ele.
–Não, não…–gemeu ela.
–O quê, então? Diga.
–Mau é não viver, só isso. Morrer já é outra coisa. Morrer é diferente do bom e do mau.
- Estou cada vez mais viva, soube vagamente. Começou a correr. Estava subitamente mais livre, com mais raiva de tudo, sentiu triunfante. No entanto não era raiva, mas amor. Amor tão forte que só esgotava sua paixão na força do ódio. Agora sou uma víbora sozinha.
- Coisas que existem, outras que apenas estão… Surpreendeu-se com o pensamento novo, inesperado, que viveria dagora em diante como flores sobre o túmulo.
- Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela trêmula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo.
- Também me surpreendo, os olhos abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa.
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Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.
- Sobretudo, pensou ainda, compreende a vida porque não é suficientemente inteligente para não compreendê-la.
- O que fazer então? O que fazer para interromper aquele caminho, conceder-se um intervalo entre ela e ela mesma, para mais tarde poder reencontrar- se sem perigo, nova e pura?
- E o mais surpreendente de tudo: como se ela tivesse escutado e risse depois, perdoando — não como Deus, mas como o diabo — , abrindo-lhe portas largas para a passagem.
- A felicidade apagava-a, apagava-a… Já queria sentir-se de novo, mesmo com dor. Mas submergia cada vez mais.
- — Não tem medo de que eu deixe você? Não sabe que se eu deixar você, você será uma mulher sem marido, sem nada… Um pobre diabo… que um dia foi abandonada pelo noivo e que se tornou amante desse noivo enquanto ele casava com outra…— Não quero que você me deixe…
— Ah…
— …mas não tenho medo…
- Quantas vezes terei que viver as mesmas coisas em situações diversas?
-
Sou um bicho de plumas. Lídia de pêlos, Otávio se perde entre nós, indefeso.
- Mas dessa vez não recomeçarei, juro, nada reconstruirei, ficarei atrás como uma pedra lá longe, no começo do caminho. Há qualquer coisa que roda comigo, roda, roda, me atordoa, me atordoa, e me deposita tranqüilamente no mesmo lugar.
- A voz de Joana riscou o quarto inexpressiva, leve, direta. Ele ergueu os olhos:
— O que é? — indagou. E sua voz era cheia de sangue e de carne, reuniu a sala na sala, designou e definiu as coisas. Um sopro reavivando as labaredas. Na praça vazia entrara a multidão.
- A voz de Otávio era áspera e rápida quando ele respondeu:
— Você sempre me deixou só.
— Não… — assustou-se ela. — É que tudo o que eu tenho não se pode dar. Nem tomar. Eu mesma posso morrer de sede diante de mim. A solidão está misturada à minha essência…
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Pois seu corpo nunca precisara de ninguém, era livre. Pois se ela andava pelas ruas. Bebia água, abolira Deus, o mundo, tudo. Não morreria. Tão fácil. Estendeu as mãos sem saber o que fazer delas depois que sabia. Talvez alisar-se, beijar-se, cheia de curiosidade e de gratidão reconhecer-se.
- (…)eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei
brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.